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"Disputa entre órgãos deixa em segundo plano o interesse público da leniência"

Por Pedro Canário editor da revista Consultor Jurídico.

Quando o Congresso aprovou a Lei Anticorrupção, houve quem elogiasse. Finalmente foram criadas formas de punir pessoas jurídicas por ilegalidades cometidas em decorrência da busca por lucro, e não por desvio de caráter de seus executivos. Mais importante, também apareceu pela primeira vez no Brasil o acordo de leniência para situações de improbidade administrativa.

A promessa era que empresas poderiam denunciar a existência de esquemas destinados a fraudar o interesse público em nome do interesse próprio. Ao mesmo tempo, se comprometeriam a criar um “programa de integridade”, que é como o Congresso traduziu a expressão “compliance”, conformidade em inglês.

Durante quatro anos, os acordos foram só isso mesmo: promessa. Pelo menos na esfera federal. Disputas por espaço entre a Controladoria-Geral da União e a Advocacia-Geral da União — a quem a lei dá a competência para tocar os acordos — inviabilizaram acordos, ao mesmo tempo em que as investigações sobre a corrupção na Petrobras avançavam. Enquanto isso, o Ministério Público Federal fechava acordos em série sob o nome de leniência, agora colocados em xeque pelo Tribunal de Contas da União, por causa dos valores acertados.

No dia 9 de julho deste ano, finalmente um acordo foi para o papel. A construtora UTC, uma das acusadas de participar do cartel formado por empreiteiras para fraudar licitações e superfaturar contratos com a Petrobras, fechou uma leniência com a CGU. O advogado que tomou a frente das negociações, Sebastião Botto de Barros Tojal, conta que a empresa procurou o governo em maio de 2015. Só em agosto daquele ano CGU, AGU e UTC conseguiram sentar à mesma mesa para discutir os termos da delação.

Ainda assim, foram dois anos de tratativas. Em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico, Tojal ensina os dois pilares indispensáveis para uma boa leniência: celeridade nas negociações e cumprimento efetivo das cláusulas combinadas entre empresa e governo. A primeira parte já não foi possível, a segunda só estará garantida se os integrantes da União encerrarem o "campeonato de maior adversário da corrupção" para botar o interesse público em primeiro lugar.

“Mais do que desarrazoado, é absolutamente ilegal e inconstitucional essa disputa entre órgãos”, comenta o advogado. “O Estado é um só, e não temos vários centros de gravidade no aparelho estatal. Temos só um. Ninguém está falando em deixar de lado a responsabilização criminal dos eventuais responsáveis, uma empresa não se confunde com seu controlador. Mas tudo isso é colocado em segundo plano nessa disputa insana entre órgãos.”

Lei a entrevista:

ConJur — Finalmente saiu o primeiro acordo de leniência conforme previsto na Lei Anticorrupção. Tendo participado de todo o processo, que lições o senhor tira para as próximas negociações?
Sebastião Tojal — Negociações que se arrastam são totalmente contraproducentes. Muito do que poderia ter sido evitado, na medida em que as informações pudessem ser mais rapidamente processadas e utilizadas, acabam se consumando, não permitindo que os acordos tenham esse papel de prevenção. Com isso o país perde, a sociedade perde, erário perde e assim por diante. O tempo da atividade econômica é muito rápido, então quanto mais cedo o Estado se municiar de todo esse ferramental, mais cedo se coibirão práticas ilícitas. Ninguém ganha com as indefinições, com a demora. Outro fator muito importante é assegurar que os acordos sejam efetivamente cumpridos de parte a parte.

ConJur — Como assim?
Sebastião Tojal — Uma empresa que se dispõe a abrir informações que indubitavelmente lhe trarão ônus, para se sentir estimulada a fazê-lo, a buscar um novo paradigma de comportamento, precisa ter garantias, precisa ter tratamento de reciprocidade. E essa reciprocidade vem muito da certeza de que estabelecidos aqueles valores de ressarcimento e os compromissos de informações, ela possa ter a certeza de que efetivamente voltará para o mercado, voltará a contratar, que não estará sujeita a novos atos de constrição patrimonial. Até porque é dessa "segurança" que as empresas retirarão condições para o cumprimento das cláusulas do acordo. O Ministério Público quando contrata, é como um efetivo integrante do Poder Público, a CGU contrata como representante da União.

ConJur — A que o senhor se refere?
Sebastião Tojal — Não me parece correto que os temas integrantes do acordo possam aparelhar amanhã demandas contra a própria empresa, mesmo que sob o argumento de que valores não foram adequadamente apurados. Primeiro porque os contratantes não agem levianamente, os valores não são jogados ao léu e apurados sem absolutamente nenhum critério. Depois porque não posso conceber a ideia de que se abra mão da garantia da não autoincriminação. Não posso amanhã admitir que há uma empresa controlada pela União que não aceite os termos do acordo que foi pela União assinado e ajuíze uma ação de cobrança, por exemplo. É preciso garantir que esses acordos possam prover as empresas da segurança necessária para, inclusive, cumprir com as obrigações. Os acordos de leniência têm que ser a materialização de uma política de Estado, não de governo. Eles não podem depender das circunstâncias políticas de momento.

ConJur — Quanto tempo o acordo da UTC demorou para ser fechado?
Sebastião Tojal — O primeiro contato aconteceu em maio de 2015, mas as negociações começaram mesmo em agosto de 2015. Foram dois anos, portanto. Não posso dar muitos detalhes, porque o acordo ainda está protegido pelo sigilo, mas foi um tempo bastante longo para fechar tudo.

ConJur — É possível afastar totalmente os interesses políticos de momento do interesse público nessas negociações?
Sebastião Tojal — A vida não permite essa separação, não é? Mas é fundamental que saibamos que há políticas de governo, mas interesse público não é privilégio de um ou de outro. É exigência que acolhe a todos, que conota a própria ideia de Estado. Se começarmos a pensar o Estado ocasionalmente divorciado do interesse público, aí as coisas estão irremediavelmente perdidas.

ConJur — Uma crítica recorrente aos acordos é justamente a essa falta de garantias de que o acordo não será transformado numa armadilha.
Sebastião Tojal — A questão da não autoincriminação não é retórica vazia de sentido. É um postulado constitucional, e isso é absolutamente essencial à segurança jurídica que deve revestir esses acordos. A empresa que quer fazer acordo está municiando a administração com uma série de informações, comprometendo-se a cessar práticas ilícitas e a buscar um novo padrão ético. Isso terá um efeito para além das relações entre a empresa e o Estado. Isso precisa ser sopesado para compreender por que a administração pública não pode, depois de celebrado aquele acordo, continuar a demandar as empresas.

ConJur — Nos acordos assinados com o MPF, vemos a empresa se comprometer a devolver uma quantia, mas depois o TCU dizer que o valor não é suficiente para cobrir o dano ao erário.
Sebastião Tojal — A expressão não é minha, é do meu amigo Carlos Ari [Sundfeld], mas existe uma sabotagem entre os órgãos de fiscalização. O Brasil investiu tanto num processo de fiscalização, criando uma série de órgãos, que, por lhes faltar sentido organizacional, acabam num processo de autofagia, um inviabilizando o outro. Isso precisa ser enfrentado. No limite do limite, se é para pensarmos na melhoria do sistema, dado que as virtudes são mais do que evidentes, o aprimoramento não deve ser feito no próprio instituto do acordo de leniência, mas na sua sistematização.

ConJur — Em que sentido?
Sebastião Tojal — É preciso estabelecer uma lógica que impeça que os acordos acabem não cumprindo o seu papel, exata e precisamente porque há esse processo autofágico entre os diferentes órgãos de fiscalização. Essa busca por protagonismo acaba fazendo com que o interesse público seja relegado ao último plano, e isso não pode acontecer. Quando o MP propõe uma ação de improbidade, o faz como substituto processual da União. A AGU e a CGU, quando assinam um acordo, o fazem como representantes da União. Soa absolutamente desarrazoado que um terceiro órgão pretenda enxergar nesses acordos a contratação de valores supostamente aquém de danos. Mais do que desarrazoado, é absolutamente ilegal e inconstitucional essa disputa entre órgãos. Na prática, eles vulneram o instituto da leniência e as empresas.

ConJur — No caso do TCU, a corte diz que a atribuição de verificar o dano aos cofres públicos é dela.
Sebastião Tojal — Mas são danos que ainda não estão comprovados. E cuja metodologia de apreciação não raro foge totalmente ao bom senso — me refiro a questões de sobrepreço e metodologias totalmente desarrazoadas, reutilizadas para seu emprego. É preciso pensar que o Estado é um só, e não temos vários centros de gravidade no aparelho estatal. Temos só um. Portanto, tudo há de gravitar em torno desse único centro. Ninguém está falando em deixar de lado a responsabilização criminal dos eventuais responsáveis, uma empresa não se confunde com seu controlador. Mas tudo isso é colocado em segundo plano nessa disputa insana entre órgãos.

ConJur — Vira uma disputa para ver quem combate melhor a corrupção.
Sebastião Tojal — No limite do limite, as informações deixam de ter a utilidade que lhes é própria e as indenizações deixam de cumprir seu papel. Quem ganha nessa histeria de disputa? Ninguém.

ConJur — Portanto são os órgãos públicos que atrapalham a aplicação da lei?
Sebastião Tojal — Temos um instituto de enorme utilidade que requer aperfeiçoamento, claro. Mas não tenho a menor dúvida de que a parcela substancial desse aprimoramento é muito menos em relação a ele, o acordo, e muito mais à sua operacionalização pelo Estado. É preciso pensar no Estado como um sistema, não como uma multiplicidade de centros de gravidade. Superado isso, vamos efetivamente alcançar um novo patamar de moralidade administrativa nessas relações público-privadas.

ConJur — Como fica, então, a questão do dinheiro combinado no acordo?
Sebastião Tojal — Para falar nos acordos, precisamos pensar no seguinte: há basicamente dois grandes objetivos que materializam o interesse público, a razão de ser da administração. O primeiro é buscar uma indenização, ressarcimento pelos danos causados pelo cometimento de atos ilícitos pelos representantes da empresa. O outro, tão importante quanto o primeiro, é permitir à administração reunir subsídios que possam alavancar outras investigações. Isso quer dizer, portanto, que as informações aportadas pela empresa são tão importantes quanto o ressarcimento. E aí para compreender essa dimensão, é preciso ter clareza, historicamente, de qual tem sido a produtividade dos mecanismos tradicionais colocados à disposição do poder público.

ConJur — E qual tem sido?
Sebastião Tojal — Sem dúvida nenhuma o histórico da Lei de Improbidade é positivo. A ação de improbidade indubitavelmente mostrou enorme avanço na tutela do interesse público. Mas é preciso reconhecer que ela demanda muito tempo e nem sempre consegue assegurar o efetivo ressarcimento. Portanto, não há termo de comparação: os acordos têm possibilitado resultados que em condições normais jamais seriam possíveis. Pelo menos não nesses montantes, e só num futuro muito distante. E não falo apenas nos acordos da Lei 12.846, também nos acordos do MPF. A administração jamais conseguiu obter de forma tão célere informações tão cruciais. Por isso, quando a gente avalia até que ponto um acordo foi efetivo, é preciso ter uma visão mais abrangente, porque não estou cuidando só de ressarcir. Que valor tem um conjunto probatório sobre determinada investigação que ainda está no início?

ConJur — A prestação de informações também tem de entrar na conta, então.
Sebastião Tojal — Não é apenas o valor produzido, mas a perspectiva de as investigações prosperarem numa rapidez maior por causa dessas informações, de maneira mais consistente e a um custo menor para o Estado. A expressão pecuniária de um acordo de leniência deve partir dessas variáveis. E ainda há outro dado importante, que é o de possibilitar à administração construir novos modelos inibitórios de práticas ilícitas.

ConJur — Isso poderia até ser usado numa política de gestão de riscos, não poderia?
Sebastião Tojal — Claro, e sempre de maneira republicana. São processos licitatórios que se aprimoram, controles que são mais bem desenvolvidos, toda uma inteligência que a administração adquire. E isso tem um efeito pro mercado, não tenho a menor dúvida.

ConJur — Agora que o acordo da UTC foi assinado e existe um acordo de leniência da forma como descrito na lei, o que acontece? Abriram-se as portas para novos acordos?
Sebastião Tojal — Minha expectativa é que outros acordos venham, que outras empresas possam vir a assiná-los e consigam fazê-lo rapidamente.

ConJur — Não há problema nisso? O fato de uma participante de um mercado assinar o acordo não impede que outras, integrantes do mesmo cartel ou do mesmo esquema, por exemplo, também assinem?
Sebastião Tojal — Claro que o pioneirismo sempre trará mais benefícios, mas a concretização de um acordo não é fator inibitório de novos. Acho até que é um fator estimulante.

ConJur — Por quê?
Sebastião Tojal — Em primeiro lugar, se todas as empresas que porventura estejam envolvidas com determinados fatos venham a contratar com a administração pública, terá se cumprido um objetivo. Vou liquidar mais rapidamente danos, estabelecer condições de ressarcimento, ter uma somatória de informações, ter compromissos de integridade de todas elas. Então é desejável que todas assinem acordos. Mas é preciso distinguir a lógica do acordo de leniência da colaboração premiada de pessoas físicas. Os acordos trazem compromissos de integridade e têm um raio de ação predeterminado. Por isso é do interesse da administração que todos os players daquele mercado assinem acordos — considerando que, claro, o que chegar primeiro terá vantagens maiores que aquele que chegar por derradeiro.

ConJur — Seria mais saudável, então, do ponto de vista da proteção das regras do jogo?
Sebastião Tojal — Isso. A gente não vai conseguir avançar na compreensão do que é um acordo de leniência, ou de qual seja sua conveniência, sem situá-lo num contexto. Todo mundo hoje está se permitindo falar sobre isso sem compreender, ou sem que se proponha a discussão sobre o ambiente em que os acordos foram inseridos. O ponto de partida é pensar que as relações entre a administração pública e seus administrados evoluíram muito nos últimos anos e têm sido orientadas pelo vetor da consensualidade. Cada vez mais a administração tem buscado mecanismos contratuais, mesmo no seu poder sancionatório, para orientar as relações entre o público e o privado.

ConJur — Não são, então, decisões isoladas, de fazer acordos por causa de uma investigação, ou da operação “lava jato”...
Sebastião Tojal — Não, de maneira nenhuma. E não são questões meramente importadas do estrangeiro e aplicadas aqui sem a devida ambientação. Muito pelo contrário. Há muito tempo a gente vem experimentando formas consensuais de interação entre público e privado, em que a punição exija também algum tipo de compromisso por parte da empresa.

Fonte: Revista Consultor Jurídico, em 30.07.2017.